LONGCHAMP, CAVALOS CLÁSSICOS E UMA POTRANCA ALEMÃ
Sassafrás
Quando o (até então) invicto e lendário Nijinsky foi derrotado por Sassafrás, em outubro de 1970, seu treinador, Vincent O’Brien, conhecido como o Mago de Ballydoyle, comentou que Longchamp era "uma pista muito difícil..."
Danedream - Arco do Triunfo 2011
Para correr os 2.400 metros do Prix de l’Arc du Triomphe, é preciso largar e subir a ladeira da reta oposta até o ponto que os franceses chamam de "pequeno bosque" (um conjunto de árvores centenárias que oculta parte da raia para quem está nas tribunas). Daí, o percurso se prolonga, nivelado, até o começo da longa curva, em acentuado declive, conhecida como "A Descida", onde os animais aceleram naturalmente e dependem da perfeição de seus anteriores para se equilibrar. Ao final da "Descida", segue-se a "falsa reta", com cerca de 300 metros, apenas um aperitivo para a tomada da verdadeira reta final, cujos metros derradeiros são abordados em acentuado aclive de oito graus até o disco de chegada.
Ganhar a milha e meia de um Grupo I como o Prix de l’Arc, hoje considerado uma espécie de campeonato mundial do puro sangue de corrida, exige quase tudo de um cavalo: equilíbrio, bons tendões e ligamentos, coração e pulmões impecáveis, capacidade de trocar de marcha e acelerar nos momentos decisivos da disputa e, sobretudo, ser dotado de uma genuína "vontade de vencer." Dos jóqueis que participam de um teste como esse, o que se espera é que tenham sido abençoados com uma superior noção de ritmo.
Vários corredores notáveis foram destruídos por Longchamp, ou porque não tinham a distância clássica, ou porque seus jóqueis não possuíam os atributos necessários para negociar as peculiaridades da pista.
É o caso, por exemplo, de Roberto (Hail To Reason e Bramalea, por Nashua) – ganhador do Derby Stakes e único animal a bater Brigadier Gerard –, que chegou em sétimo lugar, praticamente asfixiado, depois de pretender liderar a prova desde a largada.
Sagamix
O recorde de seis vitórias no Prix de l’Arc, como proprietário e criador, pertence até hoje a Marcel Boussac (Corrida, em 1936 e 1937; Djebel, em 1942; Ardan, em 1944; Caracalla, em 1946; e Coronation, em 1949). Como treinador, é de André Fabre o maior número de triunfos, no total de sete: Trempolino (1987), Subotica (1992), Carnegie (1994), Peintre Célèbre (1997), Sagamix (1998), Hurricane Run (2005) e Rail Link (2006). Quanto às fêmeas, elas são responsáveis por 18 vitórias (ou seja, 19,7% das 90 edições do Prix de l’Arc), de Pearl Cap (1931) à fenomenal Zarkava (2008), passando, entre outras, pela bicampeã Corrida (1936, 1937, mãe de Coaraze), o mito Allez France (1974), Urban Sea (1993, mãe de Galileo e Sea The Stars).
Mas o Prix de l’Arc du Triomphe não acontece de forma solitária no primeiro domingo de outubro em Longchamp. Em torno dele, são corridas outras provas de Grupo I, entre as quais:
. o Prix de L’Abbaye de Longchamp, em 1.000 metros, para animais de 2 anos e mais idade – o “sprint” em seu estado mais puro –, que normalmente atrai os melhores especialistas dessa distância. De todas as provas de Grupo I “mistas” (para machos e fêmeas) da programação clássica francesa, é no Prix de L’Abbaye que as fêmeas têm tido maior sucesso até hoje: venceram 33,73% desses confrontos. Nada de novo, pois a transmissão de velocidade no puro sangue de corrida vem originariamente de suas 43 famílias.
. o Prix Marcel Boussac (Criterium de Potrancas), em 1.600 metros, cuja vencedora se candidata imediatamente ao título de melhor potranca de 2 anos da Europa. De seu quadro de honra constam fêmeas que fizeram história no turfe mundial como Allez France, Triptych, Miesque, Zarkava, Salsabil, Shadayid, Six Perfections, etc.
. o Prix Jean-Luc Lagardère (Grande Criterium), hoje diminuído para 1.400 metros, destinado aos juvenis de ambos os sexos, e que serve como trampolim para uma carreira clássica aos 3 anos, como aconteceu com Sicambre, Brantôme, Tantième, Ambiorix, Right Royal, Blushing Groom, Irish River, Rock of Gibraltar e tantos outros.
. o Prix de l’Opéra, em 2.000 metros, para fêmeas de 3 anos e mais idade. A distância intermediária dos 2.000 metros, faz com que várias potrancas vencedoras ou colocadas no Prix de Diane sejam aqui inscritas. Entre suas ganhadoras mais conhecidas estão Waya (que levada para os EUA, venceu o Man O’War Stakes), Royal Heroine (Breeders’ Cup Mile), Bright Sky (também vencedora do Prix de Diane), etc.
. o Prix du Cadran, em 4.000 metros, destinado aos “stayers” de 4 anos e mais idade, profissionais do galope, de ritmo cadenciado e alta capacidade cardíaca e respiratória. Entre os vencedores do Cadran, encontram-se Elpenor e Waldmeister, dois dos maiores reprodutores já trazidos para o Brasil, e mais Sagaro (que, em 1976, realizou o dificílimo doublé Cadran-Ascot Gold Cup).
Para quem gosta de cavalo de corrida, corridas de cavalo e a ambiência típica de um turfe de elite, o dia do Prix de l’Arc é nada menos que um banquete real.
Uma potranca alemã chamada Danedream
Ela é pequena e leve para os padrões normais do puro sangue, foi vendida particularmente por apenas 9.000 euros depois do leilão “breeze up” de Baden-Baden em que foi apresentada (não alcançou seu preço de reserva de 10.000 euros), e estreou vencendo em uma prova em 1.200 metros realizada no modesto hipódromo de Wissembourg, na fronteira da França com a Alemanha. Mas seu coração é do tamanho do mundo.
Danedream é filha do reprodutor alemão, Lomitas (por Nininsky e La Colorada, por Surumu), hoje já desaparecido, “Cavalo do Ano” na Alemanha em 1991, e pai, entre outros, de Shalanaia (Prix de l’Opéra), de Belenus (Derby alemão), de Silvano (Arlington Million, USA), Meridiana (Oaks italiano), Liquido (Derby alemão), Malinas, Quilanga, etc.
Sua linha baixa é toda ela construída sobre uma das maiores éguas da criação Rothschild, Lady Berry (que está na origem de Le Nain Jaune, Indian Rose, Vert Amande, Groom Dancer, Plumania, Falco, todos eles ganhadores clássicos).
E seu avô materno é o mitológico Danehill (por Danzig e Raziana, por His Majesty), “inbred” 3 x 3 sobre uma certa Natalma, mãe de Northern Dancer. Nada mal.
Antes de vencer o Prix de l’Arc deste ano por acachapantes cinco corpos e em tempo record (o record anterior pertencia a Peintre Célèbre, com 2’24”6/10, em 1997), Danedream já havia impressionado a todos quando levantou, este ano, o Oaks italiano (Grupo III) por seis corpos, o GP de Berlim (Grupo I) por cinco corpos, e o GP de Baden (Grupo I) por mais de sete, no começo de setembro. Depois dessas demonstrações, T. Yoshida, o principal criador japonês, adquiriu 50% de sua propriedade.
“Criada para ter a distância clássica”
Sua esmagadora vitória no Prix de l’Arc de 2011 – a 200 metros do disco parecia que só ela corria, e quanto maior fosse a distância, mais ela se distanciaria de seus oponentes –, despertou uma grande polêmica entre os profissionais e a crônica francesa, obrigados a ouvir, de pé, o hino alemão tocado para os 51 mil espectadores que compareceram a Longchamp.
O debate foi aberto por uma contundente declaração de Freddy Head depois da corrida: “Nós massacramos o programa clássico francês, e hoje estamos pagando o preço por isso.” Freddy Head se referia à diminuição das distâncias do Derby francês (de 2.400 para 2.100 metros) e do Grande Criterium dos 2 anos, hoje corrido como se fosse um “toboggan” de 1.400 metros, ao invés da tradicional milha que revelou juvenis notáveis, como Irish River e Blushing Groom.
Na semana que se seguiu, mais gasolina foi jogada na fogueira, quando o Paris-Turf escreveu:
“Mas o golpe de graça nas pretensões clássicas da criação francesa em relação à sua principal prova, não começa aí. O trabalho de sapa vem de mais longe. Vem dos anos de 1970, quando iniciamos o processo de sistemática diminuição das distâncias de nosso calendário, em todos os níveis da competição.”
E prosseguiu:
“Do fim da Guerra a 1965, os cavalos criados na França produziram sete ganhadores do Derby de Epsom. Depois disso, quase mais nada, se considerarmos que Empery e Pour Moi são treinados na França, mas não são franceses. Chegamos ao ponto em que o Derby alemão de Hamburgo, assim como o Derby de Epsom, é que se tornaram os verdadeiros Derbys europeus, disputados na única distância que consagra um verdadeiro e autêntico ganhador clássico, os 2.400 metros.”
Os alemães não têm nada a ver com isso. Para eles, cavalo que vale a pena criar é aquele capaz de ganhar os grandes Grupos I do mundo na distância da milha e meia. E nisso, eles têm sido implacáveis há anos, usando sem concessões suas milenares “pontualidades” e métodos germânicos. Sem mencionar que cavalo medicado não serve para a reprodução naquele país.
Talvez por isso mesmo, é que os produtos de reprodutores e matrizes assim gerados, estejam obtendo preços cada vez mais compensadores nos principais leilões de potros da Europa, como é o caso de Manduro (este ano, por sinal, fazendo a monta no Brasil), responsável pela quarta melhor média de venda dos tradicionais leilões de juvenis de agosto, em Deauville (superior a 220.000 euros).
“Ter a distância clássica” e “ser feito para a durar” é o conceito alemão de criar. E Danedream, potranca de 3 anos, é apenas um reflexo disso. Não foi outra, aliás, a impressão de Dominique Boeuf, quatro vezes campeão das estatísticas francesas de jóqueis quando escreveu na segunda-feira, dia 3 de outubro:
“Danedream é uma potranca endurecida pela extrema dificuldade das corridas na Alemanha. Ela bateu o record da prova se deslocando a uma média de 59,4 quilômetros por hora, o que não é pouco. E todos os adversários que se sucederam na ponta, como Treasure Beach, St Nicholas Abbey e Shareta são animais típicos de Grupo I. Na Alemanha, não há jamais trem falso. Ela está perfeitamente adaptada a isso. Na verdade, hoje os cavalos alemães são verdadeiras rochas quando se trata da distância clássica.”
E finalizou: “Montei Sir Lando no GP de Berlim, quando ela foi impressionante, e pude vê-la de perto em ação. Após ter esperado a reta, se impôs facilmente por mais de cinco corpos.”
De todos os adversários de Danedream no Prix de l’Arc – como a favorita Sarafina (“Talvez ela não tenha a distância clássica”, disse seu treinador Alain de Royer-Dupré após a prova); Reliable Man (ganhador do Derby francês e do Prix Niel, que aparentemente não gostou, nem da pista seca, nem do ritmo da disputa); o inglês Treasure Beach (segundo no Derby de Epsom, e responsável pelo trem de corrida infernal em que foi disputado o páreo) – as duas melhores performances, ainda que bem abaixo da ganhadora, foram as da potranca Shareta (uma irlandesa da criação Aga Khan, por Sinndar, que também esteve entre nós na estação de monta de 2009) e da igualmente irlandesa, Snow Fairy, de 4 anos, ganhadora do Oaks Stakes de 2010, propriedade de Dona Cristina Patiño, boliviana, filha do mítico Antenor Patiño. A notar, que Snow Fairy foi vendida com um ano e meio por um preço ainda menor que o de Danedream. Nada mais que £ 1,300 (isso aí, £ 1,300) aos seus atuais proprietários. Os rios, no caso, não simplesmente correm, eles transbordam no mar...
Diferenças de peso no Prix de l’Arc
Este é um tema que vem ganhando cada vez mais importância na análise das chances dos animais que disputam a principal prova do turfe francês. Nela, os animais de quatro anos e mais idade correm de 59,5 quilos (exceção feita às fêmeas dessa categoria que vão de 58 quilos).
Os potros de 3 anos, porém, correm de 56 quilos e as potrancas de 54,5 quilos. Ou seja, a diferença entre estas últimas e os machos de quatro anos e mais idade, alcança nada menos que cinco quilos. Isso, em princípio, parece muito.
E parece muito, porque, teoricamente, um quilo de diferença equivale a três metros no disco em 2.000 metros de percurso. É este o conceito que preside a montagem da tabela internacional de pesos por idade nos turfes desenvolvidos.
Discute-se, neste momento, se a diferença de cinco quilos não estaria sendo significativa demais, de forma a proporcionar às fêmeas de três anos uma vantagem que superaria suas naturais limitações físicas, em relação aos machos da espécie.
Em outras palavras, discute-se se os avanços na forma de criar, e a progressiva melhoria da alimentação, aliadas ao rigor dos testes a que são submetidos os juvenis desde muito cedo, não estão servindo para reduzir as diferenças de constituição entre os dois sexos. E, conseqüentemente, exacerbando as vantagens comparativas de pesos.
Um certo Dabirsin
Seu nome, Dabirsin, é formado pelas letras iniciais dos nomes dos três filhos de seu proprietário (David, Birguit, Simon). É com ele, que este potro de 2 anos vai construindo aos poucos sua fama de estrela das pistas francesas. Invicto (cinco vitórias em cinco apresentações), realizou o difícil doublé Prix Morny (Deauville) – Prix Jean Luc Lagardère (Grande Criterium, Longchamp), do qual foi o grande favorito.
Trata-se de um potro castanho escuro, forte, que levado a leilão em Deauville, foi arrematado por 30.000 euros (cerca de R$ 73.000) pelo seu atual proprietário, e é treinado na província francesa. Seu pai, Hat Trick (Sunday Silence e Tricky Code, por Lost Code) é o melhor milheiro já produzido pelo chefe de raça Sunday Silence no Japão, e este ano está fazendo a monta na Argentina, no haras El Mallin, da família Bullrich.
Em campanha, Hat Trick ganhou 8 corridas entre o Japão e Hong Kong, dos 3 aos 4 anos, para levantar US$ 3,122,708 em prêmios, e bater o record dos 1.600 metros (92”1/10) quando da disputa da Mile Championship japonesa. Sua mãe, Tricky Code, é ganhadora de Grupo II na América e de US$ 603,901. Dabirsim é produto da primeira geração de Hat Trick, com quem, aliás, se parece muito.
E Goldikova perdeu
Do alto de seus vários Grupos I, a égua francesa Goldikova esperava se despedir de Longchamp com mais uma vitória desse nível, antes de embarcar para os EUA para tentar o tetra campeonato da milha da Breeders’ Cup no final do ano, um feito mais que inédito. E a ocasião escolhida para isso foi o Prix de La Forêt, em 1.400 metros, disputado este ano no domingo de gala do Prix de l’Arc. O sétimo Grupo I do dia.
Mas Goldikova perdeu. Não perdeu para qualquer um, como bem reconheceu depois da prova seu treinador, Freddy Head.
Perdeu para Dream Ahead (Diktat em Land of Dreams, por Cadeaux Genereux), montado pelo jovem William Buick, uma das grandes revelações do turfe inglês (que, no mesmo dia, levou ao vencedor outra ganhadora de Grupo I no Prix Marcel Boussac - Criterium de Potrancas, a americana Elusive Kate, uma filha do excelente milheiro e reprodutor Elusive Quality, outro que já fez a monta no Brasil).
Dream Ahead é um belíssimo potro de 3 anos, veloz, insistente, desses que luta até o final, filho do sprinter Diktat, e vinha de importantes vitórias de Grupo I (na Inglaterra e na França). Ele foi alcançar Goldikova em cima do disco. O photochart decidiu quem tinha ganho. Ainda assim, a perdedora foi recebida no retorno ao paddock pelas palmas de seus milhares de fãs, enquanto Buick, do outro lado, comemorava intensamente ter derrotado o que é hoje a coqueluche das corridas na França e uma das maiores glórias da longa história do turfe do país.
A considerar que Goldikova está com seis anos de idade e Dream Ahead com três. Isso aparentemente começou a pesar. Como sempre pesa para qualquer um, ter que enfrentar e bater um sprinter de Grupo I, como Dream Ahead, nos 1.400 metros de Longchamp. Não é uma tarefa fácil.
Final
Em resumo, são estes os vestígios de mais um dia de Prix de l’Arc du Triomphe. Em outras palavras, os vestígios de um turfe altamente desenvolvido, que sabe o que quer em matéria de organização.
Um turfe, no qual os heróis certos da atividade são os soberbos cavalos de corrida que ali se apresentam, e seus criadores e proprietários (principalmente esses últimos, que contam com uma divisão da France Galop dedicada exclusivamente a incentivá-los, prestigiá-los e proteger seus interesses).
Um turfe tratado com a seriedade exigida por uma indústria que hoje representa 2% do PIB francês, gera 10 bilhões de euros de apostas anualmente, faz retornar à atividade cerca de 10% de seus resultados (algo com 1 bilhão de euros por ano), e gera 60.000 (!) empregos diretos (mais que o dobro disso se considerarmos as atividades colaterais). Um turfe que existe, e é hoje padrão mundial de excelência.
Que o digam os animais de seis nacionalidades diferentes (França, Inglaterra, Irlanda, Japão, Nova Zelândia e Alemanha) inscritos este ano Prix de l’Arc du Triomphe.
Ano que vem, se Deus quiser, tem mais.
por Sergio Barcellos
Nenhum comentário:
Postar um comentário