Bem-vindos burros e mulas
A mineração em Minas Gerais precisava de um meio de transporte resistente e os tropeiros encontraram uma atividade lucrativa no lombo de muares
Entre o Rio Grande do Sul e Minas Gerais passaram cerca de 12 mil muares por ano entre 1730 e 1897. As tropas seguiam, mas nos caminhos que ficaram conhecidos como a Rota dos Tropeiros muita coisa permaneceu. Ali se formaram famílias, uma gastronomia e cultura típicas e estima-se que nada menos do que mil cidades foram fundadas para dar suporte à nova atividade econômica que se desenvolvia no Brasil.
Aos tropeiros, vendia-se galinha em um ponto, milho e mandioca em outro. Consertavam-se ferraduras e, com o passar dos anos, a rota ganhou casas de palha depois transformadas em pequenos vilarejos. Ainda não é possível listar com certeza quais foram os municípios que nasceram do tropeirismo, mas certamente o trabalho que vem sendo feito pelo pesquisador Carlos Solera, autor de dois livros sobre o assunto, vai ajudar, no mínimo, a não deixar esta cultura cair no esquecimento.
O desejo é ousado: Solera quer ver o tropeirismo ser reconhecido pela Unesco como Patrimônio Mundial da Humanidade. Para realizar essa façanha, monta um dossiê sobre o assunto desde 1979 e atualmente conta com o apoio tanto da Universidade de Girona, na Espanha, que tem prática na elaboração da documentação exigida, como do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) do Paraná. O processo ainda não foi protocolado, mas desde que as pesquisas começaram muito já foi descoberto.
Além de contribuir para o desenvolvimento econômico do Brasil, a atividade dos tropeiros foi lucrativa também para o Império português. Confira outros dados interessantes:
Pedágio
O reinado português só autorizaria a abertura da Rota dos Tropeiros se tivesse lucro. Estabeleceram, então, os postos de registros que nada mais são do que os pedágios de hoje. Na época havia três locais na rota que faziam grande parte dessa taxação: no Rio Pelotas (entre SC e RS), no Rio Iguaçu (entre Lapa e Bolsa Nova) e um em Sorocaba (SP). E o preço cobrado era alto: 20% do total do gado, ou seja, se os tropeiros passavam com mil muares, 200 deles (em dinheiro) deveriam ir para o império. O preço deveria ser pago em espécie.
Lisboa
Após o terremoto que destruiu Lisboa, em 1755, Portugal teve de recorrer aos impostos cobrados dos tropeiros no Brasil para reeguer a cidade. Grande parte do valor usado na reconstrução de Lisboa era oriundo dos cofres brasileiros e da atividade tropeira.
Origem
O nascimento da atividade não se deu no Brasil. Os países vizinhos (como Bolívia, Peru e Argentina) já exerciam a atividade, não apenas com muares, mas com lhamas também. Há ainda registros do tropeirismo feito com camelos em países africanos.
Mapa
Quem imagina que o início do caminho dos tropeiros era o Rio Grande do Sul está enganado. Na Biblioteca Nacional existe o que seria o primeiro mapa da Rota dos Tropeiros e esse documento indica que foi entre as cidades catarinenses de Laguna e Araranguá, exatamente no Morro dos Conventos, que tudo começou (veja mapa ao lado). O traçado original inicia em Laguna e termina em São Luis do Purunã – o caminho até Sorocaba (SP) já existia, assim como o trajeto até Ouro Preto (MG). Parte do trabalho dos tropeiros foi facilitada ainda porque eles fizeram uso de trilhas indígenas para criar a rota.
As explorações da rota se deram por volta de 1728, e em 1730 partiu de Laguna a primeira tropa com muares rumo a Ouro Preto (MG): foram 3 mil mulas e burros conduzidos por 130 tropeiros sob o comando do patrono atual do tropeirismo Cristovão Pereira de Abreu. Levou cerca de um ano e meio para o trajeto ser concluído. “Era cansativo não só para os tropeiros, como para o gado. Por isso eles paravam para invernar (uns três meses) nos Campos Gerais do Paraná. Era um lugar com boa pastagem e o barro era salitroso. O gado, então, não precisava receber sal na alimentação enquanto estava invernando no Paraná”, afirma o pesquisador Carlos Solera.
Os primeiros muares conduzidos eram xucros, mas depois eles foram domesticados e passaram a servir de meio de transporte para os tropeiros e também para conduzir alimentos e outros produtos como a madeira.
Novo ramal
Por volta de 1733, o caminho que começava em Laguna teve de ser abandonado, principalmente porque na região de Urupema havia índios perigosos e pouco sociáveis, o que colocava as tropas em constante perigo. Foi a partir daí que o Rio Grande do Sul entrou para a Rota dos Tropeiros: um novo ramal foi aberto com início na cidade de Viamão (RS) – os tropeiros abandonaram o caminho litorâneo de Laguna e passaram a seguir do Rio Grande do Sul pelo planalto catarinense. “Por este motivo Laguna sofreu um definhamento econômico no período”, afirma o historiador Fábio Kuhn, professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
As primeiras mulas que chegaram ao Brasil foram compradas dos países vizinhos que estavam sobre o domínio espanhol (atualmente Bolívia, Argentina e Uruguai): uma outra grande parte foi roubada ou contrabandeada. “Quando os brasileiros perceberam que era uma atividade lucrativa, construíram fazendas de criação de muares nas proximidades de Viamão. O gado muar chegava a custar dez vezes mais que o equino e o bovino na época”, explica Fábio Kuhn.
A disseminação do gado muar no Brasil ocorreu graças ao projeto iniciado pelo português Manoel Gonçalves de Aguiar. Ele era sargento e vivia em Santos (SP), onde dirigia um presídio, e respondia ainda pela costa litorânea de Santos até a região de Laguna (SC). Aguiar foi contemplado, pela Lei das Sesmarias, com um pedaço de terra onde hoje é São Luiz do Purunã (PR) – a partir desse momento ele dividia seu tempo entre as duas cidades. Durante uma inspeção no litoral catarinense, porém, descobriu que existiam muitas mulas soltas no pasto dos países vizinhos e teve a ideia de usar esses animais para o transporte de minérios de Minas Gerais ao Rio de Janeiro, já que muitos escravos estavam morrendo porque não suportavam o trabalho duro.
Nas terras sulamericanas de domínio espanhol havia mulas e burros em grande número e esses animais estavam soltos por causa da exploração de ouro na região, principalmente, do Potosi (atual Bolívia): lá a mineração havia sido desenvolvida pelo menos 100 anos antes que no Brasil. Os espanhóis usaram os animais e, depois que a exploração definhou, eles acabaram abandonando os muares no pasto. O Brasil, precisando desse tipo de gado, passou a comprá-lo, roubá-lo e contrabandeá-lo (até porque o comércio entre Portugal e Espanha era proibido) e só parou quando o Rio Grande do Sul chegou a ser um criador de muares de referência. Depois da grande exploração de muares no Brasil, curiosamente o Império teve de aprovar uma lei que proibisse a criação de mulas, na década de 1760, para evitar uma superprodução de mulas no país e a queda repentina de preço.
por Pollianna Milan
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