Em 1986, eu tinha apenas 27 anos. Era repórter de turfe do Jornal do Brasil. Na redação, dividia espaço com jornalistas famosos como Oldemário Touguinhó, Sandro Moreira, Fernando Calazans, Vicente Sena, Nilson Damasceno, Aparício Pires, Mair Pena Neto, Sérgio Rodrigues, Eloir Maciel e tantos outros. Calazans e Damasceno adoravam as corridas. E os diagramadores, Ivanir Iesbeck e Fábio Dupin, também. Mas ninguém parava na editoria mais tempo para conversar sobre turfe do que o saudoso João Saldanha.
O João entrava na redação e cumprimentava o pessoal da primeira página e ficava por lá uns 10 minutos. Em seguida passava na reportagem geral, acenava com a mão direita em posição de continência. Perguntava sobre a notícia mais importante da cidade. Batia um papo de mais de cinco minutos com o chefe de reportagem. Depois de parar para conversar fiado no caderno B, ele encerrava o seu ritual, na Editoria de Esporte. Antes de escrever a sua coluna diária, a mais lida do país, ele parava no turfe. Apaixonado pelas corridas, que segundo ele o fizeram perder uma única Copa do Mundo, todo dia ele dizia:
“E aí rapaziada do turfe. Qual é a boa?” Aquela intimidade com o jornalista mais carismático que já conheci me enchia de moral e ao meu colega Mauro de Faria. Recém formados, para nós era o máximo receber aquela atenção de uma das estrelas da companhia. O Saldanha inflava o nosso ego. Alguns anos mais tarde, empolgado com o craque Itajara, decidiu nos prestigiar. Foi até o prado para vê-lo correr e escreveu uma crônica na página de turfe. “Itajara, o cavalo do povo”. Bons tempos.
Mas esta semana, o assunto é GP São Paulo. Em 1986, eu e o Mauro decidimos assistir a prova. O páreo era equilibrado em nossa opinião, mas tínhamos esperança no triunfo de Cisplatine, da Fazenda Mondesir, que havia ganhado a prova no ano anterior, com outra craque, Bretagne. Hospedamo-nos no Hotel Lutz, na Praça Júlio Mesquita. O saudoso Mauro adorava uma boate de strip-tease e eu nunca tive nada contra. Havia bons restaurantes por perto e depois das corridas e do jantar, fazíamos nossa peregrinação pelos inferninhos.
O nosso foco principal, entretanto, era apostar em Cisplatine e sair do sufoco. Eram tempos de vacas magras. Depois de dar um tremendo derrame nas corridas de sábado, o dinheiro ficou escasso em nossos bolsos. Montamos esquema de emergência. No restaurante da Tribuna Social havia a famosa coxa-creme, um salgado espetacular, verdadeira refeição. Cada um comeu duas delas e mais um refrigerante. Dava para forrar o estômago até depois das carreiras. O favorito da prova era o gigante Lutz, um tordilho peruano, de quase 600 quilos, um craque extraordinário. A coincidência como o nome do nosso hotel nos deixou ainda mais encabulados. Eu e o Mauro nos largamos para Cidade Jardim com o objetivo de apostar em Cisplatine. E não seria um peruano que mudaria os nossos planos.
A confiança estava depositada num dos melhores jóqueis brasileiros de todos os tempos. Gonçalino Feijó de Almeida, o Goncinha. Alto, magro, introspectivo e carrancudo, o freio era um príncipe em cima de um puro-sangue. Frio, calculista e exterminador. Não deixava margem para erros. Estudava os rivais, cavalos e jóqueis. Calculava aonde os colegas poderiam errar de acordo com o temperamento e a maneira de atuar. Sabia dos prováveis passos dos adversários em todas as partes do percurso. E aí, então, traçava a sua estratégia. Com Cisplatine não foi diferente.
O Hipódromo estava superlotado. Perambulamos por todo o prado sem guardar lugar. O resultado foi o pior possível. Não havia mais lugar decente para assistir a corrida. Decidimos subir até a marquise, perto das cabines de transmissões. Acho que tivemos um acesso de alpinistas naquele momento. Quando me dei conta, eu e o Mauro de Faria estávamos no ponto mais elevado, com o Nilsão Genovesi, de microfone e binóculo em punho, em mais um momento de glória da profissão. O Mauro era cegueta e esqueceu o binóculo no Rio. Implorou-me que seguisse os passos da Cisplatine, sem me preocupar com o andamento da corrida.
Foi dada a largada e então aconteceram duas transmissões paralelas. A primeira, evidentemente, foi à oficial. Do Nilsão para o público de todo o país. A outra foi a minha para o míope do Mauro. Enquanto o locutor falava de todos os cavalos, eu me limitava a dizer a ele em que posição estava à égua do Mondesir. Por coincidência, o Nilsão falou pouco nela durante a primeira parte do percurso. Afinal, o Goncinha ficou no fundo do lote. Enquanto a transmissão transcorria normalmente, eu continuava a contagem regressiva do posicionamento da égua. No exato segundo em que Nilsão anunciava um fotochart difícil entre cerca de cinco animais, eu e o Mauro nos abraçávamos e comemorávamos o triunfo. O locutor nos alertou. “É uma fotografia complicada”. E o saudoso Mauro de Faria, que sem o binóculo nada enxergava, retrucou na ponta da língua. “Mas senhor, o Goncinha guardou o chicote em cima do disco. Quando ele faz isso não tem jeito. Nós estamos acostumados com ele lá na Gávea”.
por Paulo Gama
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