Jeane Alves
quinta-feira, 30 de dezembro de 2010
Juquinhas não são inocentes - Parte II
Existem os mais ousados que escalam o portão e põem a cabeça para fora. Ô-Tio adverte – “Cuidado pra não cair daí, viu?” –, mas não há dúvida de que para ambas as partes o cara a cara é muito mais prático do que o mano a mano. O portão no meio acaba sempre dificultando os pedidos.
– Ô-Tio, me dá uma Coca.
– A Coca acabou. Hoje só tem refrigerante de laranja, limão e uva.
– Então me dá um guaraná.
– Tem bombom?
– Só chocolate.
– Qual?
– Tem do branco, tem do preto...
– Qual do preto?
– Tem o Choco Snack...
– Qual que é o Choco Snack?
– Aquele quadradinho que vocês compram.
O estabelecimento do tio Mauro é um carrinho de pipoca cuja função original se tornou obsoleta: “Antigamente até tinha pipoca aqui, né? Mas a pipoca foi caindo, caindo, e aí veio o chipão e ocupou o lugar dela.” Esse “chipão” é um enorme pacote de chips à base de milho, em quatro sabores: queijo, presunto, bacon e pizza. Mesmo que, desde o começo do ano, o fabricante tenha estampado em letras garrafais a palavra assado na embalagem (em oposição a frito), os chipões continuam a ser uma exclusividade do mercado negro e acabaram virando o carro-chefe do recreio.
Mauro vende de 80 a 100 sacos de chipão por dia (o mais procurado é o de bacon). Ele explica por que o produto é tão viciante: “É maiorzão e não custa caro. Um real.” Além disso, o dele é um chipão diferenciado, como se diz por aí, pois Mauro passa todos os dias no fornecedor para encher o carro com fardos do produto. “Quem compra de mim sabe que aqui o chipão tá sempre novinho.”
Carlos Henrique Alves, diretor da escola, afirma que segue rigidamente as determinações legais na sua cantina. Além de oferecer merenda gratuita com cardápio balanceado, ele reduziu e adaptou as opções da lanchonete da escola. “Agora o que tem é salgado assado, biscoito de polvilho, barra de cereal... O que sobrou pra gente foi isso aí.” Felizmente a lei não mexeu com o orgulho da terra: “Com pão de queijo a gente continua trabalhando, apesar de ser um produto um pouco mais gorduroso. Mas aí é tradicional. Pão de queijo é tombado como patrimônio. A gente vende até por uma questão de valorização do produto mineiro”, diz, dando a entender que, caso um dia as autoridades cheguem à insânia de proibir o petisco, terão de se haver com um novo Tiradentes.
As vendas na lanchonete da escola caíram muito este ano, e é com certo rancor que o diretor se refere ao que chama de “a questão do baleiro”: “Tudo o que eu deixei de vender no meu barzinho agora é ele que vende. Então os meninos consomem do mesmo jeito, só que o lucro mudou de mão. A gente já conversou, mas não tem jeito. É um problema em todas as escolas.”
Naquela tarde de quarta-feira, a merenda da escola era feijão tropeiro (sem torresmo e com bastante couve) e suco de polpa de abacaxi. Ainda que fosse ótimo o cheiro que vinha da cozinha, no início do recreio lá estavam as mãos dependuradas no portão, atrás de um complemento de açúcar e gordura. As vendas só não foram tão boas porque bem no meio do recreio desabou um aguaceiro. Os fregueses sumiram e Mauro correu para proteger a mercadoria.
Só um deles não suportou passar necessidade. No auge do toró, sua mãozinha solitária se agitou por cima do portão:
– Ô-Tio! Ô-Tiiiiôô!
Mauro não escutou os berros, já se refugiara no carro. A mão insistiu uns segundos e acabou desaparecendo escola adentro, cabisbaixa e molhada como um pintinho.
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