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sexta-feira, 14 de janeiro de 2011

SERRA FLUMINENSE, ESPECULAÇÃO IMOBILIÁRIA


Câmeras de TVs capturaram os diversos ângulos da tragédia que se abateu sobre a região serrana do Rio de Janeiro. As imagens do alto e de baixo mostravam cenas de destruição e pessoas desesperadas. Casas, vidas e projetos de futuro arrastados montanha abaixo pelas chuvas de janeiro. Chuvas que desde o final de semana passado traziam dor e sofrimento aos moradores mais pobres de municípios da Grande São Paulo.
  As esperadas tragédias de janeiro, neste ano, ganharam uma dimensão diferente. Não ficaram circunscritas aos lugares distantes, lá nas periferias onde pobres constroem suas precárias habitações em várzeas e margens de rios. As águas derrubaram casas luxuosas em cenários nos quais se desenvolve uma indústria turística requintada, destinada ao consumo conspícuo da burguesia e da classe média alta. A lama que varreu do mapa as casas mais vulneráveis, mas também adentrou as pousadas e hotéis de luxo da região serrana fluminense. Às mortes dos que, destituídos de identidade, tornam-se números nas estatísticas oficiais, somaram-se àquelas de pessoas com nome, sobrenome e vinculação com empresas e instituições que formatam o poder no país.
  Por um momento, na inenarrável dor da perda, parecemos mais próximos. O bolo amargo que teima em não descer pela garganta de cada um de nós, cada vez que revemos as cenas de destruição, pareceu germinar uma solidariedade para além das classes sociais. E isso não seria pouco em um país no qual, normalmente, como aponta-nos o sociólogo Jessé Sousa, o valor da vida humana é maior ou menor dependendo do estrato social a que o indivíduo pertence.
  Mas foi só um momento. Quinta, de manhã, bem cedo, as rádios já reproduziam os discursos de especialistas ou de atores e artistas metamorfoseados em doutos geólogos a reclamar da "falta de educação" da patuléia. Essa "gente sem educação que joga garrafa pet no leito dos rios". Comparações com o Japão foram feitas. E cobranças aos governos. Estes, sempre tomados por corruptos, não fariam o dever de casa: remover o povo das encostas e retirar os habitantes das várzeas. Nas TVs, a mesma cantilena, ao vivo e a cores.
  Nenhuma palavra sobre a voracidade da indústria da especulação imobiliária, que "incorpora" áreas ambientalmente frágeis e monopoliza os terrenos mais próximos das áreas onde os mais pobres têm que trabalhar. Ou da criativa destruição ambiental desenvolvida pelo turismo, merecedor costumeiro de elegias por ser o exemplo da "indústria sem chaminés". Por certo não se esperaria alguma elaboração mais profunda desses meios de comunicação sobre como a suposta "falta de educação ambiental" dos mais pobres é produzida, mas a ausência de qualquer referência aos determinantes sociais de sua vulnerabilidade ambiental é quase um escândalo.
  Na manhã de ontem, um programa de TV ocupou quase todo o seu tempo com a cobertura da tragédia. Cenas da destruição da região serrana e das enchentes em São Paulo durante toda a manhã. As imagens alternavam dos locais da tragédia para o estúdio, onde uma mesa farta, com pães, sucos e frutas, era o contraponto das cenas nas quais pessoas desesperadas tentavam se salvar ou salvar algo. Em uma dessas cenas, duas senhoras idosas, cabelos brancos, com água até a altura de suas cinturas, banhavam os seus rostos. No estúdio, um médico que, em um primeiro momento pensei tratar-se de um dos BBBs, fazia perorações sobre os riscos de doenças relacionadas ao contato com a água da enchente. Como se, para aquelas senhoras, o contato com a água suja fosse uma opção...
  Uma das traduções que a solidariedade provocada pela tragédia poderia expressar seria uma alteração na gramática profunda subjacente à visão que temos de nós mesmos. Dessa forma, talvez, culpássemos menos as vítimas pelas tragédias que tragam a si e aos seus. Nos principais veículos de comunicação do país, ao menos desde ontem, não é isso o que está sendo vocalizado.
  Mary Douglas, a antropóloga inglesa que escreveu um exemplar ensaio intitulado "Como as instituições pensam", apontava que os eventos emergenciais não revogam os princípios que baseiam as instituições. Não tomou o Brasil como referente. Poderia tê-lo feito.


por Edmilson Lopes Júnior

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